Um olhar de gentileza

Não dá para romantizar 2020. Assim como não dá para negar que, de alguma forma, os últimos meses e tudo o que aconteceu nesse desenrolar, nos transformou. Cada um de nós sabe a jornada que trilhou e não é porque outras pessoas tenham passado pelo mesmo caminho que tenham percebido ou sentido da mesma maneira. Trazemos bagagens diferentes. Observamos e reagimos às surpresas e imprevistos de maneiras diferentes. Por isso, podemos ter chegado até aqui com um sentimento de gratidão legítimo ou com o dever de sermos gratos, ainda que goela abaixo. Fato é que essa jornada tem nos ensinado algo valioso: agradecer.

Há quem tenha agradecido pela saúde, pela recuperação ou pelo privilégio de ter vivido e convivido com alguém especial, que por algum motivo deixou esse mundo. Há quem tenha agradecido por ter uma casa para se isolar, um emprego para se manter quando tudo pareceu paralisado. E há quem, diante da ausência de movimento, simplesmente fechou os olhos e agradeceu por estar aqui, onde e como pudesse. Há quem tenha agradecido a coragem de uns, o cuidado de outros.

Agradecer nunca nos pareceu tão necessário. No momento em que nos sentimos furtados do direito de ir e vir, da normalidade das rotinas, de hábitos simples como encontrar um amigo, ir ao trabalho, fazer uma visita ou abraçar as pessoas, percebemos o quanto somos privilegiados e quantos momentos simples e tão cheios de significado nós colecionamos. Essa ruptura e a urgência em parar tudo não foi bom, é ilusório romantizar algo que nos traz dor. Mas é importante reconhecermos os sentimentos e acolhê-los. E nós sentimos muito este ano: medo, angústia, raiva, ansiedade, dor. Sentimos saudade. E sentimos amor nos gestos simples ou grandiosos que também fizeram parte desse 2020.

Em um ano em que muitas vezes fomos impedidos de escolher ou fazer algo – seja por obrigação, senso de responsabilidade coletiva ou alguma manifestação de amor que ainda não conhecíamos – eis um convite para enxergar as nossas escolhas com mais gentileza.

  • Não lamente por não ter visitado os seus pais ou algum familiar querido, você escolheu preservá-los, cuidar da saúde deles e pensar no futuro. Também não lamente se você os visitou, você escolheu estar próximo, presente e valorizar o agora. É difícil apontar o certo ou o errado, julgue menos a você mesmo e aos outros.
  • Não se cobre por não ter colocado em prática aqueles planos do início do ano. Quando rever sua listinha, lembre-se que você fez o que foi possível. E que certamente realizou tantas outras coisas que não estavam previstas e que foram até mais importantes porque fizeram a diferença para você ou para os outros naquele momento. Celebre isso!
  • Não sofra pelo que não aconteceu – uma viagem, uma festa, uma promoção ou qualquer outra expectativa que tenha sido frustrada. Se estamos vivos e com saúde, teremos ainda outras oportunidades para realizar esses sonhos e eles serão ainda mais especiais, pois ganharão força na memória que construímos entre o desejo e a realização.
  • Não ignore tudo o que você sentiu e como teve que lidar com isso. Acolher e tratar tantas emoções exige coragem, autoconhecimento e força – e tudo isso demanda muita energia. Energia gerada por você, por vezes impulsionada por outras pessoas, e que te moveu de alguma maneira para onde você está agora. Se é um bom lugar, ótimo, desfrute! Se não, use essa mesma energia para sair daí e buscar um lugar de conforto (sim, às vezes a gente precisa disso e está tudo bem).
  • Reconheça e valorize a sua jornada. Olhar para você com compaixão nem sempre á fácil, mas com certeza tem uma história linda para ser contada e às vezes tudo o que a gente precisa é repeti-la em voz alta para nós mesmos.
  • Se emocione! Permita sentir o coração apertar não por ansiedade ou qualquer outra síndrome cada vez mais comum nesse mundo acelerado que a gente se habituou a estar, mas sinta-o apertar até os olhos se encherem d´água por algo que te provoque com um sentimento muito forte e muito bom: orgulho, empatia, solidariedade, gratidão.

Quando sentir isso, deixe a lágrima cair, o sorriso se abrir e sinta o gosto salgado dessas gotas a te nutrir. Se não puder se encaixar num abraço, faça isso você mesmo: cruze os braços levando suas mãos até os ombros, afague. É você! Com todas as suas fragilidades, com todas as suas derrotas e conquistas. Se reconheça nesse abraço e novamente agradeça. Agora, pela oportunidade de seguir.

Que 2021 não nos dê apenas aquilo que pedirmos, mas o que precisarmos. Afinal, como já ouvimos por aí, às vezes a gente não sabe o que precisa. Então receba, de braços abertos, o que chegar até você. Com sorte, você seguirá se transformando e uma versão ainda melhor poderá surgir.

Comentários